terça-feira, 1 de setembro de 2009


















Anistia - 30 anos

Veja a série de reportagens que publicamos no JC entre os dias 28 e 30 de agosto com o objetivo de marcar a data com temas atualizados

Uma conquista incompleta
Publicado em 28.08.2009

Paulo Augusto e Sérgio Montenegro Filho
politica@jc.com.br

Há exatos 30 anos, o general João Baptista de Figueiredo – último da linhagem de militares pós-golpe de 64 – promulgava a Lei da Anistia. Na opinião da caserna, o ato deveria fechar feridas e ajudar a esquecer um pesadelo que durou duas décadas. Mas a canetada de Figueiredo, articulada habilmente alguns anos antes pelo seu antecessor, Ernesto Geisel, ao contrário de dirimir, suscitou mais dúvidas sobre as ações da ditadura militar. Algumas que perduram até hoje. Embora muitos militantes e familiares tenham sido indenizados pelo governo, boa parte deles continua sem saber o paradeiro dos seus mortos, e cobra a abertura dos arquivos secretos. O outro lado, que desde a redemocratização vinha se mantendo em silêncio, decidiu contra-atacar: agora, quer uma fatia das indenizações. De hoje até domingo, o JC reabre a discussão sobre uma conquista popular que a própria sociedade considera ainda incompleta.Caía a tarde do dia 28 de agosto de 1979 quando o presidente João Figueiredo sancionou a polêmica lei 6.683/79, que anistiava autores de “crimes políticos ou, conexos com estes, crimes eleitorais”. O texto havia sido aprovado seis dias antes pelo Congresso Nacional por uma apertado placar: 206 votos favoráveis e 201 contrários. Mas se havia insatisfeitos entre os apoiadores do regime militar com o processo de abertura política, entre os opositores nem tudo era sorriso. Até chegar ao formato do projeto que seria submetido à votação no Congresso Nacional, naquele dia 22 de agosto, dois grandes grupos se enfrentaram arduamente.
Liderado pelo PCB, o Comitê Feminino pela Anistia – que congregava outras facções da esquerda mais moderada – concordava com o esboço da lei apresentado pelo governo. Já o Comitê Brasileiro pela Anistia, tinha como principal pilar o PCdoB – que acabara de perder militantes na Guerrilha do Araguaia, debelada em 1973 pelas forças de repressão –, que não aceitava o jargão “ampla, geral e irrestrita”. Queria acrescentar a expressão “não-recíproca”.
Essa ala mais radical dos comunistas advertia desde aquela época que, da forma como estava colocada, a lei não beneficiaria apenas políticos, estudantes, sindicalistas e militantes presos, exilados e com direitos cassados. Também perdoaria as ações dos chamados “agentes do Estado”, inclusive os torturadores. E mais: trazia no seu bojo dispositivos que excluíam militantes acusados de “crimes de sangue” – responsáveis por atentados e assassinatos de agentes ou simpatizantes do regime – e políticos considerados perigosos à segurança nacional. Os ex-governadores Miguel Arraes e Leonel Brizola figuravam no topo dessa lista, assim como figuras de destaque no cenário da época, como o líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião.
Mesmo um substitutivo apresentado pela Arena – partido governista – não acalmou de todo os ânimos, embora tenha ajudado a garantir a aprovação do projeto, que ao final permitiria o retorno de exilados e a libertação de centenas de presos políticos. “A anistia, da forma proposta pelo governo, era mais do que eles queriam, mas menos do que nós desejávamos”, diz ainda hoje o jornalista e escritor Marcelo Mário de Melo. Ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Marcelo foi preso em março de 1971 e libertado em abril de 1979, pouco antes da aprovação da lei.
Para o ex-magistrado e ex-deputado federal constituinte Egídio Ferreira Lima, houve uma “singularidade perversa” na anistia. “Estava tudo pronto, mas eles (o governo) esperaram as eleições de 1978. Só fizeram a lei um ano depois, para que os cassados não pudessem concorrer a cargos eletivos. Com isso, adiaram por mais quatro anos nossas chances de chegar ao poder pela via institucional”, afirma Egídio, que no início de 1969 teve seu mandato de deputado estadual cassado pelo AI-5, mas recusou-se a seguir para o exílio, tornando-se uma referência para consultas – sobretudo jurídicas – dos militantes pernambucanos.
Não é a toa que em meados de julho de 1979, quando ocupava o cargo de conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, foi chamado a dar parecer sobre o projeto elaborado pelo governo. “Eles aproveitaram algumas sugestões minhas, mas faltou muita coisa à base do projeto, cunhado por Petrônio Portela”, diz, referindo-se ao ministro da Justiça do governo Figueiredo, notabilizado anos antes como condutor da “Missão Portela”, que ensaiou os primeiros passos da política de “distensão gradual e segura” empreendida por Ernesto Geisel presidente
“A Lei da Anistia é ambígua, porque sugere uma autoabsolvição antecipada do Estado de qualquer responsabilidade jurídica em relação a crimes cometidos por seus agentes”, afirma o vereador olindense Marcelo Santa Cruz, ex-militante e hoje advogado da área de direitos humanos.
À época apenas advogado, o hoje deputado federal Roberto Magalhães levanta a voz contra as críticas à Lei de Anistia. Ele considera perigoso para a democracia promover, após 30 anos, o aprofundamento da discussão sobre o alcance da iniciativa. “A anistia encerrou um momento de conflito extremado de forças, com mortes de ambos os lados. Reabrir isso é quase uma insanidade, é radicalismo”, contesta. “O que se pretende com isso? Reabrir feridas, voltar ao passado? Isso é falta de patriotismo, num país pacificado e democrático como o Brasil”.

---------------------------------------------

Famílias de militantes lutam pela abertura de arquivos secretos Publicado em 28.08.2009

Para grupos de familiares de militantes desaparecidos durante o regime militar, embora promulgada há 30 anos, a Lei de Anistia ainda está longe de pacificar o País. Até hoje sem notícias dos seus mortos, eles insistem na abertura de todos os arquivos secretos da ditadura. No seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva encaminhou ao Congresso Nacional projeto nesse sentido, hoje ainda em tramitação. Mas independente da iniciativa, militantes dos direitos humanos avaliam que falta força ao governo para cobrar tal ação.
Para alguns desses militantes, falta disposição ao governo para enfrentar a cúpula militar, que não pretende abrir mão facilmente dos seus segredos. “Quem tem arquivos secretos, deveria entregá-los. O poder civil mostra que ainda não tem controle sobre as Forças Armadas”, critica o jornalista Marcelo Mário de Melo, defendendo uma reforma militar no País. Segundo ele, houve avanços desde o dia 28 de agosto de 1979, sobretudo nos dois últimos governos, mas muito ainda precisa ser feito.
Há quem afirme que o dia de promulgação não representa a data real em que a Lei de Anistia passou a vigorar de fato no Brasil. Para o jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, por exemplo, ela teve início com um gesto do então presidente Ernesto Geisel, ao propor a distensão “lenta, gradual e segura”. Teve prosseguimento a partir das articulações dos ministros Petrônio Portela (Justiça) e Golbery do Couto e Silva (Casa Civil), mas só se tornaria irreversível quase um ano após ser sancionada por João Figueiredo. Mais precisamente depois do atentado à bomba no Riocentro, promovido por agentes da linha-dura do regime militar no Rio de Janeiro, em 1980, durante uma festa do Dia do Trabalhador, como represália ao processo de distensão política. “Somente ali se consolidou o processo, e não havia mais como combatê-lo”, conclui.

-------------------------------------

Manifestações e protestos pelo País para marcar a data
Publicado em 28.08.2009

Ex-militantes, familiares de mortos e desaparecidos e integrantes dos movimentos pelos direitos humanos realizam hoje, em vários Estados do País, manifestações de comemoração e protesto para lembrar a assinatura da Lei de Anistia. No Recife, o ato acontece às 16h, na Praça Padre Henrique, na Rua da Aurora, em frente ao Momumento Tortura Nunca Mais. Organizado pelo Fórum de Anistia, a solenidade traz o bordão “Pelo Direito à Verdade, à História e à Memória!”.
Segundo os organizadores, desde a promulgação da anistia, lutas pontuais têm restabelecido direitos e promovido indenizações financeiras, mas falta o principal: a recuperação dos restos mortais dos militantes mortos e a punição dos responsáveis pelos crimes. “A não abertura de todos os arquivos daquele período impede o livre acesso às informações e não permite aos familiares desvendar os locais onde foram enterrados os corpos seus entes queridos”, diz o Fórum da Anistia, em nota divulgada à imprensa. A solenidade contará com a participação de várias entidades do movimento popular, associações e partidos políticos.
BRASÍLIA
Na próxima segunda-feira, a Lei da Anistia será lembrada nacionalmente em Brasília, às 16h, durante uma sessão solene da Câmara dos Deputados. A iniciativa partiu do deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), em conjunto com vários parlamentares. “Já três décadas se passaram desde a publicação da lei. Precisamos comemorar a luta pela democracia e rememorar, sobretudo para as novas gerações, os ásperos tempos da ditadura militar, garantindo que o autoritarismo não se repetirá”, afirma Alencar, acrescentando uma crítica às “formas disfarçadas de imposição que existem ainda hoje no País”.

-------------------------------------------

Os filhos do exílio
Publicado em 29.08.2009

Paulo Augusto e Sérgio Montenegro Filho
politica@jc.com.br

Longe dos amigos, dos vizinhos, do verdadeiro lar. O exílio ou a clandestinidade, antes de qualquer um dos muitos males conhecidos, despertam no cidadão um sentimento único e doloroso: o de ser um excluído da sociedade. Esse é um pensamento unânime dos filhos de políticos e militantes exilados ou perseguidos pelo regime de exceção pós-64. Eles não são, porém, tão unânimes ao analisar a Lei de Anistia, promulgada em 28 de agosto de 1979, que permitiu aos seus pais deixar os esconderijos ou voltar ao Brasil. Esse é o tema da segunda reportagem da série sobre os 30 anos da Anistia, que o JC publica até amanhã.Para os que já eram nascidos, frequentavam escolas e mantinham laços de amizade, o susto foi maior. Deixar tudo para trás sem entender o que estava realmente acontecendo. Para os que nasceram na clandestinidade, porém, o sofrimento não foi menor. Desconhecidos apareciam do nada e, de repente, a família mudava novamente de casa.
“Ficamos entre Pernambuco e Alagoas. Eu nasci em Carpina, em 72, numa granja onde amigos deixaram minha família se esconder por uns tempos. Minha mãe ensinou a mim e meus irmãos a ler e escrever com uma lista telefônica. Só tive casa, mesmo, depois da anistia, em 79”, relembra o sindicalista Diogo Sales, filho do também sindicalista José Sales, já falecido. Sales pai presidia o então fortíssimo Sindicato dos Tecelões de Moreno, era militante do MDB e se opunha ao grupo político de Constâncio Maranhão, empresário local. Com o golpe, houve a intervenção no sindicato e ele passou a ser procurado vivo ou morto. “Ele pegou minha mãe e meu irmão mais velho, que tinha quatro meses, e fugiu. Não podia trabalhar porque era conhecido aliado de Miguel Arraes”, conta Diogo, cujo pai sobreviveu até a anistia como feirante, mudando de cidade em cidade.
Para o médico e pesquisador Luiz Arraes, a situação era menos perigosa, mas não menos estranha. “Nenhum argumento me convencia de ter o pai preso. Só depois entendi a luta dele e a lógica daquilo”, diz o filho de Miguel Arraes, deposto em 1964 e exilado no ano seguinte, na Argélia. Junto com alguns dos nove irmãos, Luiz ficou morando com uma tia, e só seguiu ao encontro do pai em 1969. “Apesar da Argélia ser ocidentalizada na época, tinha cultura de país árabe. O choque foi grande”, conta Luiz.
Quem também voltou ao Brasil antes da família foi o hoje secretário estadual de Articulação Regional, Waldemar Borges Neto. Filho do deputado estadual cassado em 1969 Waldemar Borges Filho, o Deminha, ele rumou ao encontro da família para o Paraguai, e de lá para os Estados Unidos, onde o pai, ex-professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, recebera oferta para trabalhar na Organização dos Estados Americanos (OEA). “O exílio desagregou um pouco a família. Eu voltei antes dos meus pais, uma irmã casou com um estrangeiro, outra foi morar no Chile”, explica Wal, que assim que retornou ao Brasil, após a anistia, filiou-se ao MDB e seguiu os passos do pai na militância política.
Filho de Francisco Julião, o sociólogo Anatólio Julião foi para o exterior antes mesmo do golpe, em 1962, para estudar em Cuba – atendendo a um convite de Fidel Castro ao pai. Anatólio tinha 12 anos. “Fomos os primeiros exilados do País, pois já estávamos fora quando aconteceu o golpe”, conta. A decisão de sair do Brasil já tinha a ver com questões políticas. “Meu pai sofria ameaças de morte e sequestros. Viu no convite de Fidel uma boa chance de reduzir essas preocupações. Mas foi difícil.”
EXÍLIO AFETIVO
De acordo com a psicóloga Danielle Diniz, a privação do afeto é o primeiro sentimento presente no exilado. “É o sentimento de não-pertença. Você está num lugar como um estrangeiro, como alguém que não pertence àquele país, por melhor que a pessoa tenha sido acolhida”, explica. Segundo as palavras da psicóloga, “é um exílio político e também afetivo”. Por mais que dure, a vida no exílio também é formada por incertezas. Por isso, “vive-se com baixo-estima e não se consegue criar vínculos fortes. Os vínculos reais foram rompidos”.
--------------------------------------------

ENTREVISTA » THEODOMIRO ROMEIRO DOS SANTOS
“Eu não ia ser anistiado e fugi”
Publicado em 29.08.2009

Quem vê o juiz Theodomiro Romeiro dos Santos despachar em seu gabinete no Tribunal Regional do Trabalho, não imagina seu passado de combatente do PCBR e preso político. Aos 57 anos, ele lembra, nesta entrevista ao JC, os fatos que o notabilizaram como o primeiro militante armado a ser condenado à morte pela ditadura. Mesmo depois de muito esforço para comutar a pena e conseguir a liberdade, Theodomiro terminou excluído da lista de anistiados em 79. Diante da ameaça de morrer na prisão, escolheu a fuga, e somente em 85 voltou ao Brasil.JC – O que o senhor fez para se tornar o primeiro combatente da ditadura condenado à morte?

THEODOMIRO ROMEIRO – Estava num encontro clandestino com mais dois militantes do PCBR, no Dique do Tororó, em Salvador. A repressão soube e nos surpreendeu lá. Eu e outro companheiro, Paulo Pontes, fomos logo imobilizados. Um terceiro militante, Getúlio Cabral, conseguiu fugir atirando. Nos jogaram na parte de trás do jipe, algemados um ao outro, enquanto perseguiam Getúlio. Mas deixaram minha bolsa perto. Eu peguei minha arma, feri um agente da Polícia Federal e matei um sargento do Exército.
JC – Quanto tempo na cadeia?
THEODOMIRO – Dois dias na PF de Salvador, depois fui transferido para o Forte do Barbalho. Nos primeiros 12 dias fui muito torturado, depois ficou mais esporádico. Permaneci lá até março de 1971, quando fui para a Penitenciária Lemos de Brito, onde fiquei até agosto de 1979.
JC – Como evitou a pena de morte?
THEODOMIRO – Em 1971, fui condenado por um conselho de justiça improvisado. Apelei ao Superior Tribunal militar, que comutou a pena para prisão perpétua, também às pressas, por causa das manifestações populares aqui e no exterior, contra a minha condenação. No STM, houve um voto, do general Bizarria Mamede, contra a perpétua. Ele defendia 30 anos. Com base nisso, entrei com novo recurso e reduziram para 30 anos.
JC – Para o senhor, não houve anistia.
THEODOMIRO – Fiquei feliz de ver muita gente anistiada, companheiros sendo soltos ou retornando do exílio. Mas eu não ia ser anistiado, porque tinha cometido “crime de sangue”. O governo não ia conceder anistia ampla, geral e irrestrita. Readequaram a Lei de Segurança Nacional para manter presos os que mataram agentes da repressão. Mas com essa readequação, minha pena foi reduzida para 14 anos. Em 1979, eu pedi liberdade condicional e o Conselho Penitenciário aprovou por unanimidade, mas o auditor militar, que dizia que eu tinha amplas chances de ser solto, ao final, negou a minha liberdade.
JC – Por que o senhor fugiu, se a pena havia sido reduzida?
THEODOMIRO – Quando perguntaram por mim ao então governador baiano Antônio Carlos Magalhães, ele disse aos repórteres: “Theodomiro não vai ser anistiado. E vocês sabem, brigas na cadeia são uma coisa muito comum...” Aí eu não quis arriscar se era bravata dele. Haroldo Lima e Paulino Vieira, que estavam presos comigos, seriam soltos. Eu ia ficar sozinho. Então, fugi.
JC – Como o senhor escapou?
THEODOMIRO – Me escondi por uns dias no interior da Bahia, de onde segui para a Nunciatura Apostólica do Vaticano, em Brasília. Eles (a igreja) negociou com o governo brasileiro minha saída para o México, onde permaneci apenas por dez dias. Depois segui para Paris, onde vivi até novembro de 1985, quando finalmente fui anistiado e pude voltar.

-----------------------------------------

A lei também vale para torturadores?
Publicado em 30.08.2009

Paulo Augusto e Sérgio Montenegro Filho
politica@jc.com.br

Quem, afinal, merece o “prêmio” da anistia? Os torturados e perseguidos, esses obviamente que sim. E quanto aos torturadores, seus atos foram apenas crimes políticos – passíveis do perdão da lei? Eis uma questão que se encontra no centro de um debate atual, e que é tema da terceira e última parte desta série que o JC publica lembrando os 30 anos da Lei de Anistia.O cenário poderia ser um dos porões de qualquer quartel ou delegacia brasileira. De um lado, sob a pressão do ofício, um profissional, provavelmente membro do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi). Do outro, encurralado, um preso político, também chamado pela ditadura militar de “subversivo”. A missão: fazer com que o prisioneiro dê informações que ajudem a localizar outros “comunistas”. Assim, cumprindo ordens, o integrante do destacamento iniciava um interrogatório que, se necessário, terminaria em violentos atos de tortura – desde o espancamento, até métodos como pau de arara e choques elétricos.
Passados 30 anos da promulgação da lei nº 6.683 – a Lei da Anistia –, uma enorme e polêmica discussão encontra-se em pauta: este profissional, mais conhecido como torturador – que, cumprindo ordens de superiores, espancou, violentou, e por vezes matou prisioneiros –, também deve ser anistiado pelos seus crimes?
No cerne da questão está a interpretação da lei, pleiteada desde seus primórdios para que fosse “ampla, geral e irrestrita”. Para uns, a anistia veio para beneficiar os dois lados – tantos os perseguidos, quanto os perseguidores –, o que, na prática, foi o que aconteceu. Para outros, o significado era claro: benefício para os perseguidos, punição severa para os perseguidores – mesmo estes tendo cometidos “crimes políticos”, o que permitiria o benefício da lei.
Atualmente, a questão vem sendo tema de intenso debate envolvendo, inclusive, altas esferas do governo federal. Enquanto o ministro da Justiça, Tarso Genro, defende veementemente o julgamento dos torturadores, o ministro da Defesa, Nelson Jobim acredita que a anistia aprovada em 1979 beneficiou os dois lados. Semana passada, Genro expôs sua opinião: “Quem torturou, matou e cometeu violências nos porões da ditadura” não merece ser beneficiado pela lei. “Anistia não é amnésia”, disse. Para Jobim, a anistia promoveu “ampla reconciliação nacional” e “perdoou” os excessos cometidos dos dois lados.
Em relação ao assunto, o jornalista e escritor Marcelo Mário Melo, ex-preso político, entende que a questão é complicada. “Os nossos crimes foram todos punidos, enquanto eles (torturadores), que agiram em nome do Estado, ficaram impunes. Em outros países, como o Chile, os carrascos foram punidos”, afirmou.
Segundo o também ex-preso político e juiz do TRT-PE Theodomiro Romeiro dos Santos, “todo mundo sabia que a lei da anistia iria valer também para os torturadores. Agora, isso não é imutável. É uma questão de análilse jurídica, até porque vai de encontro ao direito internacional, que diz que crimes de tortura não prescrevem”, opinou.
A polêmica deve ser definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que julgará ação impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), questionando os excessos cometidos nos anos de chumbo. Assim, quem sabe, será dado mais um passo para que a lei assinada em 1979 se torne um pouco mais completa.
REPARAÇÕES
Outra das tantas polêmicas envolvendo a anistia refere-à questão das pensões e indenizações. Segundo dados do Ministério da Justiça atualizados em junho deste ano (ver arte), desde 2001 já foram concedidos mais de R$ 2,6 bilhões em indenizações aos anistiados políticos que sofreram perseguição durante o regime militar. Porém, o tema está longe de ser resolvido – há uma enorme disparidade, por exemplo, entre o valor das indenizações e os que foram pagos às famílias das pessoas que foram assassinadas no regime.
Na avaliação da presidente da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Criméia Alice Schmidt de Almeida, há distorções entre as leis que regulamentam a reparação econômica aos anistiados (Lei nº 10.559, de 13/11/2002) e as indenizações dos parentes das vítimas (Lei 9.140, de 4/12/1995). “O que houve no Brasil foi um crime contra a cidadania. As pessoas deveriam ser indenizadas igualmente. É por isso que um morto e desaparecido acaba sendo menos valorizado do que alguém que perdeu emprego ou foi impedido de trabalhar”, compara.
-----------------------------------------

ENTREVISTA » PAULO ABRÃO
“Temos muito o que avançar”
Publicado em 30.08.2009

Presidente da Comissão de Anistia desde abril de 2007, Paulo Abrão é consciente das limitações do processo de anistia no País. Segundo o professor de Direito da PUC-RS, “a revelação da verdade ainda é pequena” e a justiça “ainda não encontrou meios de devolver aos atingidos a segurança que o Estado de Direito promete”. Nesta entrevista, Abrão fala também sobre a problemática questão das indenizações pagas aos ex-perseguidos políticos e se posiciona a respeito da punição aos torturadores do regime.JC – Após 30 anos, qual o balanço que o senhor faz da anistia? O Brasil conseguiu curar todas as suas feridas?

ABRÃO – Na América do Sul os processos de transição são extremamente longos. Se pegarmos as quatro medidas centrais para uma transição bem sucedida: a revelação da verdade, a reparação das vítimas, a reforma das instituições e o retorno do Estado de Direito, vemos que o Brasil ainda tem muito a avançar, mesmo em relação aos países vizinhos. A questão da reparação avançou muito, especialmente com os trabalhos da Comissão de Anistia e da Comissão de Mortos e Desaparecidos, mas a revelação da verdade ainda é pequena e a justiça ainda não encontrou meios de devolver aos atingidos pela ditadura a segurança que o Estado de Direito promete.
JC – Existem críticas com relação ao valor das indenizações pagas aos ex-perseguidos políticos. Qual sua posição?
ABRÃO – A Lei n.º 10.559 é extremamente assimétrica. Se de um lado existem indenizações muito altas para aqueles que perderam seus empregos, de outro as reparações para as vítimas de tortura, desaparecimento, prisões arbitrárias e toda a sorte de sacrifícios são muito baixas. Isso ocorre pois o Congresso Nacional fixou dois critérios de reparação. Quem perdeu o emprego em função de atividade política ou sindical deverá receber pensão mensal vitalícia equivalente ao que ganharia se estivesse na ativa, com efeitos retroativos até 1988. De outro lado, quem foi preso ou torturado ganhará 30 salários mínimos para cada ano que foi perseguido, em uma parcela única, com limite de R$ 100 mil. Assim, uma pessoa demitida pode ganhar uma prestação mensal e mais um retroativo altíssimo, e uma pessoa torturada ganhar 30 salários mínimos. A Comissão tem procurado resolver essa assimetria através da aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, mas uma mudança mais efetiva nos critérios depende do Poder Legislativo.
JC – A Comissão de Anistia, desde 2007, vem reduzindo os valores das indenizações. Por quê?
ABRÃO – Para aqueles que não tinham vínculos laborais a lei não oferece opção, a única forma de reparação é a prestação única até R$ 100 mil, independente de quanto tenham sofrido. Neste caso a Comissão nada pode fazer para reduzir injustiças. Já no caso da prestação mensal, a lei oferece dois critérios: a progressão ao topo da carreira e a média de mercado. Desde o governo FHC vinha-se aplicando a progressão ao topo da carreira. Isso gerava distorções enormes. Num exemplo simples: duas pessoas presas juntas por dois anos, que sofreram as mesmas privações, uma era estudante de medicina do último ano, outra recém formada trabalhando em um hospital. Para a primeira a reparação será uma parcela única de 60 salários mínimos, para a segunda uma reparação mensal até o final da vida no valor do salário de um médico, mas retroativos até 1988. Antigamente supunha-se que a segunda pessoa poderia ter chegado ao topo da carreira de médico, ganhando R$ 20 mil mensais, e assim era deferida a reparação, somada de um retroativo que passava dos milhões. Hoje nós buscamos a média remuneratória de um médico, que na maioria das regiões não é muito superior a R$ 3 mil ou R$ 4 mil. Esse exemplo demonstra tanto o modo como trabalhamos para reduzir as assimetrias, quanto os limites para o que podemos fazer sem alterar aquilo que a lei determina.
JC – Existe uma polêmica se a Lei de Anistia de 1979 deve ser estendida ao crime de tortura e a Comissão se posicionou favoravelmente. Por que os torturadores devem ser punidos?
ABRÃO – Essa pergunta deve ser invertida: por que os torturadores não devem ser punidos? Devemos sempre lembrar que a ditadura afastou o Estado de Direito, que sempre negou a prática de tortura, que a anistia a esses crimes não está escrita na lei de 1979 e, ainda, que o Brasil assumiu internacionalmente o compromisso de punir esse tipo de conduta. Defender que os torturadores não devem ser punidos é fazer uma defesa política do regime de exceção, é defender a tese que a ditadura era necessária. O argumento para não punir os torturadores é tão frágil que, para se sustentar, chega a afirmar a existência de crimes como o “estupro político”. Não há, na história do direito, um único tribunal que tenha considerado o estupro de uma pessoa detida como um crime político. Os tribunais do Chile e da Argentina já declararam que as anistias não podem beneficiar os membros dos regimes de exceção, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, da qual o Brasil faz parte, já anulou efeitos de leis de impunidade no Chile, Paraguai, Peru, Colômbia, Guatemala e Equador. O Brasil segue sozinho na lista dos países onde graça a impunidade.

Nenhum comentário: